Mais do que um olhar sobre a solidão de um órfão¹

Jugu Abraham

 

Filmes de estreia revelam tentativas criativas inerentes ao diretor de seduzir o espectador, muito mais do que se torna evidente posteriormente no seu corpo de trabalho. Alguns diretores amadurecem fazendo cada novo filme mais atrativo do que a sua primeira experiência no cinema. Estas exceções são poucas e distantes entre si –Bergman, Kieslowski, Kubrick, Tarkovski, Terrence Malick e John Cassavetes estão entre os poucos que evoluíram para melhor depois de seus primeiros filmes. Muitos, como Orson Welles, não.

O primeiro filme de Árpád Bogdán seduz com elementos visuais estilizados e uma intensidade que nos oferece insights sobre a mente do diretor. Seu profundo conhecimento sobre o assunto fica evidente ao longo de um filme desprovido de sexo e violência. Existe uma sensação poética nas imagens, que incluem um cavalo correndo solto pelas ruas de Budapeste antes de ser pego e levado para um trailer de cavalos. A sequência é um misterioso e simbólico lembrete dos elementos visuais do início do filme, um menino fugindo dos pais/responsáveis, que são presos pela polícia, enquanto a figura da mãe incita a criança a correr antes que ela seja também capturada e levada a um orfanato, psicologicamente assustador. E mais tarde, depois de ter assistido ao filme, não me surpreendi ao descobrir na internet que essa interessante história sobre a institucionalização de órfãos foi feita por um homem que viveu com uma família adotiva até os 14 anos e nunca teve uma experiência escolar regular. E ainda assim é um poeta e um pintor! Estaria um jovem Paradjanov surgindo na Hungria? Feliz vida nova te seduz como um poema visual, revelando algumas emoções e absorvendo outras para o espectador interessado descobrir. Não é surpresa que muito do filme seja autobiográfico.

A importância de um primeiro filme é geralmente maior quando o roteiro também é escrito pelo próprio diretor. O jovem Bogdán previsivelmente escreveu seu próprio roteiro. Ele não precisa de outra pessoa para escrever. É a história de um órfão que cresceu em um orfanato público, e que depois de crescido deixa o abrigo para menores para ganhar a vida e criar uma família. Vida em família é um simples presente do qual a maioria das pessoas desfruta, mas que no filme falta ao protagonista, exceto por algumas memórias fugazes de infância. Apenas quatro mulheres fazem rápidas passagens pelo filme, uma em um cartaz de perfume que ganha vida numa sequência de sonho, uma senhora que é a mãe adotiva de uma menina órfã, imagens de uma mãe perdida, e finalmente a jovem órfã que sente falta de sua verdadeira mãe. Se notamos a escolha das presenças femininas, vemos que todas as fases da vida estão representadas. Não há, no entanto, nenhuma óbvia relação homem-mulher como em outros filmes comuns – porque o crescimento do jovem homem é retardado pelos acontecimentos. Mesmo assim o filme apresenta lugares “vazios” à mesa de jantar em uma fábrica e posições fetais que demonstram a solidão do protagonista. O filme diz muito visualmente. São poucas as palavras faladas. Comparado a um prolixo filme sobre órfãos na Austrália, Um verão para toda vida (2007), Feliz vida nova seria quase um filme mudo. Mas com poetas como Bogdán, longas conversas são um excesso de bagagem a ser evitado.

Antes do filme começar, há um prefácio do diretor sobre um grande número de jovens “órfãos” húngaros sob os cuidados do Estado que depois de crescidos são jogados na sociedade como iguais e constroem suas próprias famílias. O protagonista quer saber sobre o seu passado. Ele se depara com um envelope de documentos entregue a ele por um guarda benevolente. O espectador depois o vê destruindo o envelope e seu conteúdo. O guarda, percebendo que a informação só teve efeito negativo sobre o jovem, se arrepende da sua decisão, mas convida o antigo interno a conhecer sua nova casa rural. O filme parece desesperançoso, pois o diretor opta por deixar questões reais parcialmente escondidas do espectador para que ele as desenterre.

Feliz vida nova forçou-me a recordar outro primeiro filme que trata de questões existencialistas, sociais e morais – Nas garras do vício (1958), de Claude Chabrol, discutivelmente sua obra mais sofisticada, e que foi o pontapé inicial do movimento da Nouvelle Vague francesa. Naquele filme, também, um dos dois amigos, François, grita para Serge: “Vocês são como animais, como se não tivessem razão para viver”. Serge responde: “Não temos. Como poderíamos? A terra é como granito; é quase impossível arrancar vida dela. Eles trabalham porque não tem escolha”. Em Feliz vida nova também o jovem órfão não vê “razão para viver” quando sai dos orfanatos, especialmente quando sabe quem realmente é. O diretor Árpád Bogdán declarou em uma entrevista que mesmo que o filme represente uma visão desesperançosa, ao contrário da história do filme, ele pessoalmente teve uma visão positiva da vida ao criar filmes, pintar e escrever poesia. Espera-se que esse pequeno e premiado filme com o ator Manfred Salzgeber, tendo sido exibido no Festival de Berlim de 2007, impulsione o diretor a fazer um cinema ainda melhor do que o mostrado aqui.

Muitas perguntas irritariam o espectador depois de assistir ao filme. É o filme apenas sobre a solidão dos órfãos? Não existem mensagens suficientes no filme sobre famílias ciganas na Hungria e em outros locais da Europa, mesmo que o termo “cigano” nunca seja mencionado? O jovem diretor admitiu interesse no estudo da cultura romani. A diretora búlgara Milena Andanova fez recentemente um filme interessante, embora menos estilizado, intitulado Monkeys In Winter (2006), que trata desse tema que emerge para cineastas na Europa, assim como aconteceu com alguns cineastas americanos, como Abraham Polonsky, que tentou mostrar a visão do indígena americano no western revisionista Willie Boy, o rebelde (1969). Assim como as questões relacionadas às promessas quebradas feitas aos índios americanos são raramente discutidas nos EUA, os ciganos da Europa perceberam que suas questões foram varridas para debaixo do tapete por cada um dos países e regimes.

Um dos dois fotógrafos que trabalharam em Feliz vida nova é Gábor Szabó, um jovem operador de câmera húngaro escolhido por Vilmos Zsigmond para filmar seu primeiro trabalho como diretor, The Long Shadow (1992). Zsigmond é um renomado diretor de fotografia húngaro que deixou sua marca em Hollywood, e se ele sentia confiança em Szabó não é surpresa alguma que Bogdán tenha escolhido seu nome. É incomum que dois fotógrafos dividam os créditos, como em Feliz vida nova – Mark Gyori (também editor do filme), com Szabó como segundo. Teriam Bogdán e Szabó se desentendido?

Cineastas húngaros me fascinam, particularmente Zoltán Fábri, István Szabó e até certo ponto Miklós Jancsó – tanto que como um jovem crítico de cinema viajei através dos continentes até Nova Deli e Budapeste para entrevistar dois deles em 1982. Fábri teria ficado contente com o trabalho do jovem Bogdán se estivesse vivo hoje.


1 Originalmente publicado pelo site Movies That Make You Think – www.moviessansfrontiers.blogspot.com.br em outubro de 2008. Tradução de Fabiana Comparato.