Uma jornada incerta
Débora Butruce e
Orsolya Balogh
Territorialidade e cultura de fronteira
Rodrigo Corrêa Teixeira
Ciganos no Brasil: uma identidade plural
Mirian Alves de Souza
De Tarabatara a Rio cigano
Julia Zakia
Iugoslavo de nascimento, cigano por profissão¹
Eduardo Valente
Entrevista: Emir Kusturica¹
Anthony Kaufman
Latcho Drom exibido pela Cinemateca francesa¹
Raphaël de Gubernatis
A caravana cigana¹
Nick Roddick
A necessidade de trincheiras¹
Fabian Cantineri
Mais do que um olhar sobre a solidão de um órfão¹
Jugu Abraham
Ciganos à mesa
Tony Gatlif, nascido Michel Dahmani, é um cineasta premiado e um rom. Nasceu na Argélia em 1948, filho de um pai berbere e uma mãe cigana. De família pobre, Gatlif, como muitos argelinos, sentia uma atração irresistível pela França – assim, aos 14 anos, sem nada nas mãos a não ser as roupas do corpo, encontrou-se sozinho em Paris. Dormindo ao relento, começou a entrar furtivamente em cinemas durante o dia para se aquecer, mas também para se entregar à sua verdadeira paixão: filmes. Usando o talento cigano natural para a atuação, logo garantiu um lugar na escola de teatro e, por muitos anos, ganhou a vida no palco. Mas, por alguma razão, não se sentia confortável nessa posição. Começou a fazer filmes sobre a experiência de ser parte de um povo misterioso, o povo rom. Seus primeiros trabalhos eventualmente atingiram o público certo e, em 1992, lançou-se num projeto que o tornaria famoso no mundo das cerimônias de premiação e do glamour, sendo finalmente reconhecido por tratar das questões relacionadas aos ciganos europeus. O nome do filme é Latcho Drom. Descrito pelo New York Times como “um retrato lírico intenso da cultura cigana”, Latcho Drom traça, por meio da música, a jornada do povo rom. O sucesso desse filme resultou em reconhecimento mundial e, em 2004, com o filme Exílios, ele ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes.
Tom Ewer é um aclamado chef britânico e um rom. Também conhecido como “o chef cigano”, Ewer está trabalhando num livro de culinária que investiga, por meio da comida, sua herança cigana. É ele quem entrevista Gatlif.
Como você descreveria sua herança e como ela moldou sua vida e sua carreira de cineasta?
Liberdade, dor, humilhação, mas também orgulho, uma maneira de viver um dia de cada vez. Ontem não existe, amanhã também não. Todos esses aspectos são importantes em meus filmes.
Com seu conhecimento profundo da vida cigana em todo o mundo, quais valores e tradições você diria que são os mais importantes hoje nas modernas comunidades ciganas?
Após viajar pela Romênia, Grécia, Turquia, Espanha… diria que a sobrevivência.
Nos países de língua inglesa, há muita incompreensão acerca da palavra “cigano” e do seu significado. Como você entende o uso atual da palavra cigano e suas origens?
Hoje a palavra “cigano” é usada como posição política. Em muitos países, tem também um pouco de romantismo… Os ciganos vêm do Rajastão, estado no norte da Índia. Durante a jornada [dos ciganos], houve uma mistura intensa de línguas, comida e música. Boa parte da língua, das raízes e tradições orais remonta à Índia.
Do seu ponto de vista, que papel tem a comida na cultura cigana?
Primeiramente, diria que a comida é preciosa. No passado, era preciosa porque era rara. A palavra “comer” na linguagem cigana é muito importante. Até hoje, a comida é muito importante para os ciganos pobres e ricos, é um sinal de fartura porque houve muita pobreza no passado.
E quando falamos de comida o que lhe vem à mente?
A comida simples de quando eu era criança. Muita carne de caça. Minha mãe conhecia muito bem as plantas, sabia muito bem como prevenir doenças.
Tendo viajado bastante com ciganos e sintis durante a filmagem de Latcho Drom, você se lembra de alguma comida ou hábito alimentar interessante no set?
Os indianos do Rajastão nos convidaram para o deserto. A equipe que estava comigo não conhecia os ciganos. Não queria que vissem como as almôndegas eram cozidas. Um dos técnicos viu uma cigana amassar a carne enquanto espantava moscas. Ele se recusou a comer… É claro que eu comi, e estava excelente.
Nessas viagens por estradas, tem algum gênero alimentício do qual você sente falta?
Geralmente, como comida simples. Na beira de estrada ou em um restaurante. Gosto de carne gratinada ou caldeirão cigano – espécie de panelão onde se mistura tudo (pão, carne, vegetal).
Você acha que há alguma receita que represente melhor a cultura cigana?
O excelente caldeirão cigano. E tem uma coisa que é impressionante, mesmo nas casas mais pobres o ato de cozinhar é realizado em condições de absoluta limpeza, porque, como disse, ciganos têm muito medo de doenças.
Seus filmes celebram a riqueza da cultura cigana, mas também retratam injustiças cometidas contra as comunidades ciganas ao redor do mundo. No futuro, como acha que a cultura cigana vai existir, se transformar e ser representada na mídia?
Os ciganos não tiveram acesso à modernidade. Em todos os países europeus, não lhes foi permitido entrar no século XXI. Hoje são vítimas de preconceitos raciais, essas coisas medievais. Os ciganos não falam do passado ou do futuro, falam do presente. Agora a geração mais jovem precisa pensar sobre o futuro, e esse futuro tem que ser pensado por ciganos e por amigos que falem a mesma língua. Seu destino não deve ser governado por pessoas que não entendem quem eles são.
1 Originalmente publicado pela revista The Gypsy Chronicle em novembro de 2012. Tradução de Tiago Jonas.