Uma jornada incerta
Débora Butruce e
Orsolya Balogh
Territorialidade e cultura de fronteira
Rodrigo Corrêa Teixeira
Ciganos no Brasil: uma identidade plural
Mirian Alves de Souza
De Tarabatara a Rio cigano
Julia Zakia
Iugoslavo de nascimento, cigano por profissão¹
Eduardo Valente
Entrevista: Emir Kusturica¹
Anthony Kaufman
Latcho Drom exibido pela Cinemateca francesa¹
Raphaël de Gubernatis
A caravana cigana¹
Nick Roddick
A necessidade de trincheiras¹
Fabian Cantineri
Mais do que um olhar sobre a solidão de um órfão¹
Jugu Abraham
Julia Zakia1
De longe, à beira da estrada de terra, avistamos duas barracas de lona grossa e escura. Fumaça emanava de uma fogueira, dando leveza à paisagem. Uma senhora de cócoras cuidava do fogo, enquanto algumas poucas galinhas, ciscavam por perto. Crianças corriam e gritavam.
De perto, podíamos ver direitinho, eram certamente ciganos, os olhos verdes- esmeralda e a fala cantada, um dialeto estrangeiro, nunca ouvido antes por nós. No peito, palpitação de criança que descobre um mundo novo. Mais um encontro abrindo outros possíveis.
Montado num jegue, o senhor mais velho do grupo fumava seu cigarro de fumo picado e seguia rumo à cidade mais próxima. Lá ia pedir autorização ao prefeito para poder acampar algumas noites naquelas redondezas. Estavam de passagem. E nós também.
O primeiro contato com essa família cigana, de nome Ferraz, foi em julho de 2005. Sentíamos as profundezas do sertão de Alagoas, enquanto pesquisávamos locações, histórias e depoimentos para um filme de Guilherme César, integrante de nosso grupo-produtora Gato do Parque.
Alguns de nós, pela primeira vez, visitávamos a terra de Graciliano Ramos e de tantos outros artistas. Era como buscar sinais telúricos dos cenários dos filmes São Bernardo e Bye bye Brasil, assistidos em 35 mm e estudados nas aulas de História do Cinema Brasileiro com o professor Carlos Augusto Calil. No antigo Auditório Paulo Emilio Salles Gomes, na USP, já havíamos estado ali naquele sertão, através do cinema.
Com pouca bagagem, um caderno e uma caneta, numa estradinha entre Senador Rui Palmeira e Carneiros, encontramo-nos pela primeira vez com essa família cigana, que viria a ser fundamental e definitiva em nossos filmes, em nosso imaginário e da qual nos tornaríamos grandes amigos. Até hoje, de quando em quando, o telefone toca em nosso apartamento: às vezes é o Michel, outras vezes é a Sielma, o Guilherme ou a Nega. Vontade de saber se está tudo bem. Vontade de saber quando voltaremos até eles.
Zilma, Nando, Sielma e Didi são irmãos. Os quatro são tios de Ciça. E todos são primos de Suene. Uma grande família cheia de virtudes e problemas como qualquer outra família que se conheça de perto. A diferença: são ciganos calon do sertão de Alagoas, migrados da Bahia, do Pernambuco e de outros estados do nordeste.
O líder do grupo, Seu Francisco, desde o primeiro contato, já tratou de definir bem os limites: “Cigano é cigano, e quem não é cigano, nunca vai ser cigano, não adianta o que faça. Isso desde o tempo de Tarabatara, antes do mundo ser mundo”. E completou: “Se quiser ficar aqui essa noite, pode botar a barraca de vocês ali, na outra margem da estrada. Aqui tem uns formigueiros bravo. Muita formiga”.
Mas não se via formigueiro algum e afinal por que um velho cigano, tão experimentado na vida da estrada, acamparia perto de formigas? Ele queria uma certa distância. Confiou desconfiando. E nós também.
Estrada de terra, Senador Rui Palmeira. É madrugada, um silêncio de sapos. Todos parecem dormir, já apagaram a fogueira. A nossa ainda crepita. Alguns animais de casco rompem do mato, ouvimos a voz do cigano Adenor, chamado de Aluado, tocando os bichos e cantando uma mistura de palavras que não compreendemos. A música começa nordestina e torna-se incerta. Vinda de longe, a voz rouca do velho, mesmo falando baixo, chega até aqui dentro. É estranho, parece que ela vem pela terra.
Na manhã seguinte, depois da primeira noite com eles, a vontade era ficar ali, não perder a oportunidade que o acaso nos proporcionava. Mas tínhamos que seguir nossa viagem e pesquisar outras partes de Alagoas. Nos prometemos voltar e falamos ao líder cigano: “Temos que ir, mas vamos voltar e encontrar vocês de novo”.
Ele riu, debochando, duvidando que voltaríamos e menos ainda que seríamos capazes de encontrá-los novamente. Não tinham moradia fixa e em poucos dias já estariam em outro lugar. E depois de um tempo estariam em mais outro, depois em outro e outro.
“Desde o tempo de Tarabatara”, a frase ecoava. Que tempo seria esse? O que significa Tarabatara? Como seria a experiência de viver com eles um tempo e se aproximar dessa cultura tão forte em sua resistência e na sua instigante presença?
Os ciganos calon, numerosos no nordeste, chegaram ao Brasil degredados de Portugal, desde 1574, com a chegada de João Torres, sua mulher, filhos e algumas outras famílias ciganas. O Tribunal do Santo Ofício decretara no reino de Portugal: “… em podendo, haveremos de deitar fora essa má casta”. 2
E assim o fizeram, deportando consecutivamente muitas levas de ciganos para o Brasil. Preconceituosos ao extremo e cheios de ódio e inveja, os representantes da igreja e do reino tentavam se livrar de um modo de vida, de uma cultura considerada ameaçadora.
Existem algumas boas fontes bibliográficas que abordam sem preconceito ou misticismo exagerado o modo de vida cigano. Mas são poucas e não dão conta da diversidade de experiências possíveis que estão sendo ou já foram vividas por esses povos.
A melhor e mais coerente fonte de respostas e inspiração sobre o modo de vida cigano são eles mesmos. É a forma mais real. Tínhamos que voltar e morar com eles, isso era certeza. Para conseguir alcançar esse objetivo, escrevemos o projeto de um documentário intitulado Tarabatara (a palavra ficara colada em nossas mentes desde que Seu Francisco a pronunciara, como um chamado). E após quase dois anos do primeiro encontro com os Ferraz no sertão de Alagoas, ganhamos o Prêmio Estímulo ao Curta-Metragem da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e pudemos partir em busca do reencontro com o velho cigano e sua família.
Era março de 2007. Perambulamos alguns dias pelas pequenas cidades sertanejas. De feira em feira, de fazenda em fazenda, seguindo os rastros e buscando o paradeiro dos Ferraz. Após menos de uma semana, encontramos um acampamento. A primeira grande surpresa foi como a dimensão havia mudado. Em vez de duas barracas, nos deparamos com mais de 20 barracas armadas, muitas roupas coloridas estendidas em arames, crianças que não acabavam mais. Som alto de música e muitos animais pastando.
O coração a mil, tudo ainda incerto. Será que o Seu Francisco mora aqui? Serão os mesmos ciganos? Será que nos deixarão viver com eles por alguns meses, convivendo e filmando as famílias?
Entramos no acampamento e fomos conduzidos por algumas mulheres direto para a barraca do chefe, Francisco. Muitas pessoas o visitam para fazer consulta às suas cartas de baralho cigano. Acharam que estávamos lá pra isso.
As crianças que já tinham nos visto em 2005 se lembraram de nós e falaram pro velho. Ele acabou lembrando, mas não entendeu por que estávamos ali, por que tínhamos voltado. Fomos conquistando a confiança ao longo dos dias. Só depois de deixar claras nossas intenções e percebermos que éramos bem-vindos, é que começamos a tirar a câmera da mala. Mais de uma semana depois.
Não tivemos pressa, não invadimos a vida deles, não fomos indiscretos. Pouco a pouco fomos desenvolvendo amizade com as diversas famílias ali presentes e aprendendo a viver ao relento, com eles. Sentindo os dias e noites, os luares e cantares de pássaros noturnos. Catávamos lenha com as mulheres, buscávamos água, improvisando o banho, compramos uma galinha para ciscar e comer possíveis escorpiões e aranhas; e entre tantas outras coisas, filmávamos nosso documentário. Afinal estávamos ali pra fazer um filme e não podíamos nos descuidar disso.
Nossa barraca aguentou muito sol e belas pancadas de chuva. Aprendemos a armar a tenda com eles. Na primeira tempestade, homens e mulheres vieram nos ajudar, ensinar a fazer os “regos”, escavando como que dois leitos de rio, um por dentro e um por fora da lona, para a água ter por onde escoar e não empossar dentro.
Apesar disso, a umidade sempre estava ali, e esse era o convite para nossos inquilinos constantes, sapos gigantes entocados no canto quente da cobertura dos equipamentos.
As crianças ensinaram os caminhos no mato, as brincadeiras com os pés descalços na lama.
Ao longo dos meses, entrevistamos cada casal do acampamento, filmamos quase todas as ações e tarefas domésticas e não perdíamos eventos repentinos, surpresas que o acaso trazia. Dias de queima de fogos de artifício na quaresma, casamentos, nascimentos e batizados. Dias em que a viola comia solta na poeira e a bebida transformava o clima do lugar. Dia de se recolher antes, dormir cedo. Faíscas de luar, estrelas cadentes, grilos, sapos, brisas e repentinas saudades.
Foi inquietante para nós viver de perto a experiência da vida cigana. Viver ao longo de estradas, esse viver narrado por Seu Francisco nos fins de tarde: mulheres que, em seu tempo de menino, via parir à sombra dos umbuzeiros e logo seguiam viagem com os recém-nascidos enrolados em panos, e todos sob um sol sem dó. A liberdade e a dor com que as crianças são criadas e exercem funções dentro do grupo. Fazendeiros que não davam guarida nem em dias de extremo calor e fome. A força e a importância das mulheres para a manutenção e sobrevivência de todos. A facilidade de se adaptar a lugares tão distintos. O dom de ler a sorte, o talento musical, a facilidade para as artes manuais e o adestramento de animais. E a mais poderosa força de resistência de uma cultura que vem sendo depredada e insultada há tantos séculos.
Bem perto da gente, todos os dias, crepitam as fogueiras da Família Ferraz.
O menino Darlan encara, mostra desde que idade um cigano tem esse olhar.
Aprendeu a mirar assim com Dona Meire. Mulher forte, corajosa. Meire é a irmã mais velha de algumas mulheres no acampamento. As irmãs da família Esmeralda, casadas com os filhos e netos de Seu Francisco. Meire é uma liderança feminina no grupo. Viúva de um dos filhos de Seu Francisco, não teve filhos naturais . Adotou o pequeno Darlan de uma outra cigana, aparentada, logo que ele nasceu. Sorriso sempre pronto pra espantar qualquer coisa da sua frente, e esse olhar, pra proteger os seus.
Maria é a mulher do chefe. Maria faz o fogo. Maria faz a comida. Maria amamentou todos os marmanjos que vemos ali, quase todos são seus filhos. Quem não é seu filho, é neto ou bisneto. Toda tarde quando o sol está se pondo, Maria e Francisco dividem o cigarro de corda, feito por ele e acendido por ela. Que saudades do velho e da velha.
Às ciganas
MULHERES CIGANAS
SORRISO DE PRATA
TORAS DE LENHA
PENTES DE OURO
OLHAR DE FACÃO AFIADO
QUANDO CRIANÇA BATEM E BRINCAM
ADULTAS CRESCIDAS SEGUEM
ENCHEM BALDES DE ÁGUA
PLANTAM PEDEM PAREM
SOPRAM O FOGO
TODA CHAMA MANTÉM ACESA
O MOVIMENTO DOS JEGUES NA ESTRADA
FOI ONTEM QUE PARARAM COM O COCHILO BAMBO
HOJE ESTÃO NUM MESMO LUGAR
CARREGAM O RANCHO O HOMEM O ALIMENTO
NÃO TROPEÇAM
-CADÊ O PIRÃO?
-MARIA TÁ PREPARANDO
-AMANHÃ NÓIS PARTE?
-E QUEM SABE?
Tarabatara foi o primeiro filme que fizemos com os ciganos. Assim que o filme ficou pronto, voltamos para Alagoas e exibimos o curta projetando na parede de fora da igrejinha da cidade. Toda a comunidade estava presente e quem mais quisesse ver.
Completado esse ciclo, fui morar um ano na Sérvia, para filmar e pesquisar a vida cigana nos Bálcãs, entender as diferenças e semelhanças e expandir meu contato com as fronteiras do imaginário cigano. A vontade de fazer um longa-metragem de ficção no qual os ciganos seriam os personagens principais já existia desde antes de filmar Tarabatara.
Sabia que para poder falar sobre eles num filme e ter a chance de realizar um bom trabalho, teria de novamente ir fundo; para isso, não adiantava esperar sentada as ideias surgirem na frente do computador. Teria de ir mais uma vez ao encontro deles.
Mas por que sair de Alagoas e ir à Sérvia? Um tal disparate de paisagens e costumes. A resposta estava nos grandes filmes de Emir Kusturica. Todos e cada um de seus filmes ciganos3 influenciaram a vontade de morar naquela região do mundo para buscar e construir as peças do quebra-cabeça cigano iniciado com aquele primeiro encontro, aquele do acaso feliz na estradinha de terra de Alagoas.
Queria conhecer ciganos de outro hemisfério, ver de perto esses ciganos dos Bálcãs, musicais ao extremo. Trompetistas e violinistas talentosos e divas do canto como Esma Redzepova e Dzansever. A música cigana é protagonista em diversos festivais, dias em que as cidades ficam tomadas por crianças e adultos tocando trompete horas a fio.
Final de 2007, Surdulica, sul da Sérvia. Com a atriz Georgette Fadel, procurava algum cigano que pudesse nos vender um trompete usado e ensiná-la a tocar algumas canções. Achamos. O trompete não era zero bala, mas rendeu uma aula com três gerações de ciganos sérvios, cada um com sua malícia e sopro, passando adiante algumas canções ciganas e outras folclóricas da Sérvia. Os pistões do trompete tiveram que ser soldados novamente, pouco tempo depois de comprado, mas as cantigas não foram esquecidas.
Enquanto no Brasil os limites intransponíveis são as cercas das grandes fazendas e os caminhos, antes possíveis, têm se tornado propriedade privada, nos Bálcãs são as fronteiras entre os países e a necessidade de se obter vistos infinitos que limitam o nomadismo e dificultam a manutenção do modo de vida cigano.
Quando estávamos na Sérvia, milhares de ciganos foram deportados da França, Alemanha e Espanha. Adolescentes nascidos e criados naqueles países da Europa de repente se viam obrigados a retornar ao país de seus pais e avós, sem saber falar o idioma e completamente deslocados, não tinham perspectiva de arranjar trabalho nem de se adaptarem a um modo de vida que já não era mais deles.
Passados alguns anos, percebo que o curta Tarabatara foi um passo fundamental na pesquisa de imagem, de som, de ambiente, de cultura, nossa aproximação primordial com o grupo. Se não fosse essa primeira temporada de filmagens e vivências, jamais teríamos chegado ao resultado que pode ser visto em nosso longa-metragem Rio cigano, que acaba de ser finalizado. O longa é a elaboração ficcional de toda essa vivência alagoana somada ao tempo vivido e às filmagens realizadas na região dos Bálcãs.
Há um nomadismo na própria maneira como o filme foi feito, ao longo do tempo e em diversos espaços. Com uma nova coragem, apesar da essência continuar sendo a estrada, a liberdade temática e formal pôde ser radicalizada.
Como definiu uma das comissões de seleção que nos apoiou na etapa de produção: “A cultura cigana, pouco difundida pelo cinema brasileiro, ganha um tratamento que mistura elementos de aventura e toques de surrealismo”.
Rio cigano conta a história de duas meninas ciganas, Kaia e Reka, separadas na infância e criadas em mundos diferentes. Durante uma viagem, os ciganos se veem obrigados a atravessar a fazenda de um conde, de onde são expulsos. Em meio ao tumulto da fuga, Reka se perde e é raptada pela mulher do fazendeiro.
Ela passa a viver no casarão da fazenda, absorvida pelo trabalho e se agarra às poucas lembranças da vida cigana. Kaia cresce com a própria família até que, certo dia, deixa o acampamento e a proteção familiar para partir em busca de Reka, a quem nunca esqueceu.
Muita gente pensa e fala que cigano rouba criança. Dessa vez a história não é a de ciganos que roubam as crianças, mas da mulher do fazendeiro que sequestra e usurpa a infância de uma cigana. São os que vivem cercados de muros e de medo que interferem e ameaçam a harmonia e a liberdade dos indivíduos ciganos.
“A alma do filme é cigana e feminina. Raro por ser cigano, mas mais raro ainda por ser feminino, tocante e quase brutal.” — Bernardo Chileen, ASS
Ciganos cicatriz dão olé no vento.
20h30, frio ameno. Belgrado.
Domingo à noite, céu limpo como há dias não se via. Estrelas visíveis. Estava fazendo a curva para encurtar o caminho quando a melodia da sanfona de Srk, cigano de 15 anos, alcança meus ouvidos.
Rumo à sua música, entro no calçadão de passeio, com lojas abertas dia e noite, frequentadas por casais e famílias.
O garoto Srk, concentrado na música que aprendeu com seu avô, parte de um repertório não muito vasto, mas tocado com afinco. Os passantes lhe dão algum dinheiro. Dez, 20 dinares por passante, centavos de real.
Do outro lado, Stefan, de 8 anos, irmão mais novo de Srk, fica sentado com uma caixa de sapatos à sua frente. Também recebe algum dinheiro.
Na soma das duas caixas, depois de horas ali, recebem um dinheiro razoável e ajudam a mãe nas despesas de casa.
Na segunda música, a sanfona geme uma cantiga triste, melancólica. E do nada inicia-se uma correria alegre. Três adolescentes ciganas brincando de pega-pega no meio dos casais e da vigilância. Alguns passantes incomodados.
Elas, com o olhar vivo e os corpos livres, correndo, driblando, quase trombando nas pessoas, mas desviando surpreendentemente no último segundo.
Quero brincar.
Ela quer brincar.
Vêm então correr pelas ruas de Belgrado, sorrindo infância. Lembrar rápido do drible. Ao som da sanfona triste, um jogo alegre.
Srk entregou a sanfona ao irmão, que começou a improvisar outras notas, outras combinações entre o fôlego da sanfona e a velocidade de suas mãos, miúdas.
Lindo, provocava as meninas. Correria boa, frente, trás, direita, está pego, está pego, é sua vez de correr e tentar alcançar os corpos que já se vão na sua frente, do tempo que não espera ninguém, não espera o convite pra brincar e ouvir e rir, estando a sós com os sonhos, com a vida de agora.
Direita, esquerda, trás, frente, olé no vento, olé no tempo, por umas passadas largas, ofegantes, olé, olé…”
Pedra bruta
Estávamos na Bósnia à procura de locações para a personagem cigana Kaia4 ser filmada caminhando. Paisagens variadas com o mesmo figurino. Fomos parar em Mostar, uma cidade destruída pela guerra da Bósnia nos anos 90 e ainda cheia de cicatrizes em sua paisagem e nas suas antigas construções. Praças que viraram cemitérios. Prédios, bairros e pontes destruídos. Nos arredores da cidade muitos ciganos vivem na miséria e continuam sofrendo os abusos e absurdos do que sobrou da guerra.
“Entre as vítimas mortais civis, 83 por cento eram bosníacos, 10 por cento sérvios e mais de 5 por cento eram croatas, seguidos por um menor número de outros, como os albaneses ou povo romani. Pelo menos 30 por cento das vítimas civis bósnias eram mulheres e crianças.”5
O filme Pedra bruta é fruto do encontro entre a atriz Georgette Fadel e a pianista local Amela Vucina. O material, que poderia ser uma das inúmeras caminhadas da personagem no longa, emancipou-se e virou um filme em si. Essa cigana, sozinha, andando e interagindo com as ruínas e vestígios da guerra. Uma mistura entre performance musical e documentário.
Santa Sara
Convidados por Gabriela Hess, uma atriz e dançarina brasileira, alguns integrantes do grupo Gato do Parque, dirigidos por Laura Mansur, realizaram o curta-metragem Santa Sara. No sul da França, em Saintes-Marie-de-la-Mer, desde 1923 os ciganos de toda a Europa se encontram para alguns dias de festa e peregrinação à padroeira Santa Sara. Em tempos de consumismo de imagem, turistas e suas câmeras invadem os espaços. Entre eles, a dançarina brasileira encanta e resgata a cultura cigana.
Foram poucos dias, éramos mais uma das milhares de câmeras que apontavam suas lentes para os ciganos e não ciganos, artistas e turistas de uma cidade de peregrinação. Fugir do olhar turístico era difícil, mas havia cantos com manifestações espontâneas de música e de fé, autênticos, organicamente ciganos.
Muitos trailers e barracas, muitos hotéis e casas de aluguel. Muitos euros circulando, muitos euros faltando também. Uma experiência fundamental para entender o poder e a banalização da imagem. A responsabilidade e o cuidado que se propõe alcançar.
E aquela era uma parte de Belgrado que eu não conhecia bem. Um emaranhado de ferro, ferrugem, saudade. Na pele ainda era precoce invocar a falta daquilo. Era ainda o que estava vendo. Tinta fresca. Era outro domingo e subi na ponte verde, reformada. E subi para sentir o tremor do trem passando. Só água lá embaixo. Rio Danúbio de novo. Os meninos ciganos na frente, degrau por degrau, tudo proibido.
É mesmo esse gosto de ferrugem que vim resgatar?
Ou esse tremor que abala as bases. Outro trem, dessa vez vermelho, puxado pela maquinista séria de uniforme desbotado, herança comunista.
Sorria, bela senhora, sorria que o trem já passa e treme a ponte toda, ensurdece os passageiros, arrepia os gatos, afasta os peixes da pesca.
Nada! Aqui não se sorri tão fácil.
Foi naquele outro outono que as pernas foram tomadas em assalto e correram pela praça vazia, varrendo e partindo as folhas.
Era o túnel e depois o vazio mais colorido das noites daqui.
Zum, era o trem vermelho indo para a garagem. Zum, os meninos ciganos seguiam agarrados a ele, pendurados por fora.
Risonhos e ligeiros, cheio de adeus.
Julia Zakia, São Paulo 2013
1 Julia Zakia é cineasta, diretora dos curtas Tarabatara e Pedra bruta e do longa Rio cigano.
2 DORNAS FILHO, João. Os ciganos em Minas Geras. Belo Horizonte: Panorama, 1948.
3 Buffet Titanic, 1980/ Do You Remember Dolly Bell?, 1980/ O tempo dos ciganos, 1988/Underground – Mentiras de guerra, 1995/ Gato preto, gato branco, 1998.
4 Personagem interpretada por Georgette Fadel no longa-metragem Rio cigano (produção Superfilmes, em associação com Gato do Parque).
5 Wikipédia, a Enciclopédia Livre. (Guerra da Bósnia.)