A caravana cigana¹

Nick Roddick

 

O dinâmico documentário de Jasmine Dellal, Caravana cigana, se propõe a impulsionar a música cigana na consciência musical mainstream. Com cinco anos de produção, o filme é composto por uma vívida celebração de uma cultura musical extraordinariamente vibrante que se manifesta de diferentes formas, mas com tradições semelhantes em diferentes partes do mundo.

O filme acompanha uma caravana de trupes ciganas em uma turnê, entrelaçando impressionantes cenas musicais com histórias e circunstâncias individuais, e apresenta a Fanfare Ciocarlia, banda que trouxe abaixo a tenda do festival de verão Cambridge Folk Festival, junto com os companheiros romenos do Taraf de Haïdouks; os performers do Rajastão, os Maharaja; e a companhia de flamenco Antonio El Pipa, da Espanha. E sobressaindo a todos, a elegante cantora da Macedônia Esma Redzepova, que tem uma voz de parar o trânsito e é mais popular nos Bálcãs do que a cantora galesa Shirley Bassey em sua cidade natal Tiger Bay.

Por ter conhecido o Taraf quando filmava Porque choram os homens (filme de Sally Potter de 2000 sobre uma refugiada que viaja da Rússia aos Estados Unidos e se apaixona por um cavaleiro cigano), Johnny Depp também faz uma aparição, trazendo um pouco de rock’n’roll ao filme. “Johnny é aquele que basicamente coloca em palavras o objetivo do filme”, explica Dellal, “que é fazer com que as pessoas percebam que o que sempre acreditaram sobre ciganos não é verdade.”

O povo rom – o termo “cigano”, antes distintamente pejorativo, recentemente voltou a ser aceito – iniciou sua migração da Índia há mais ou menos mil anos. Foi um dos grupos mais vitimizados do século XX: um milhão ou mais morreram no holocausto, e a perseguição persiste até hoje em muitas partes do mundo, principalmente na República Tcheca, Eslováquia e Romênia. E não só aí: o cigano demonizado é tema de lendas populares. Lembram da canção infantil “My mother said never to play / with the gypsies in the woods”2, pois isso traria todos os tipos de terríveis consequências – como seu cabelo nunca encaracolar?

Mas, segundo Dellal, mesmo a ideia de uma existência nômade é em parte mito. “A verdade é que os ciganos foram forçados a se mudarem de seus locais de origem; depois vieram as leis contra sua instalação na maioria dos lugares, então esta foi uma identidade imposta de fora para afirmar que os ciganos eram viajantes. A grande maioria dos ciganos hoje em dia é sedentária e tem sido assim há pelo menos um século.”

Dellal foi introduzida à cultura rom contemporânea quando fez o documentário para um canal de televisão público dos Estados Unidos intitulado American Gypsy (1999) sobre uma família vivendo na cidade de Spokane, perto de Seattle, e começou então a perceber o nível de desconfiança e hostilidade que sofriam oficialmente. “Descobrimos que existem folhetos sendo distribuídos por diferentes departamentos da polícia classificando típicos ‘crimes ciganos’”, conta ela. “Eles têm listas de nomes tipicamente ciganos, maneiras de reconhecer criminosos ciganos e se colocar em vantagem. Eles realmente têm isso publicado e circulando.”

Irmã da diretora Gaby Dellal (On a Clear Day, 2005) e filha do magnata “Black Jack” Dellal, Jasmine, que estudou jornalismo na Universidade de Berkeley depois de cursar Oxford, ainda mantém um impecável sotaque britânico apesar dos 11 anos vivendo nos Estados Unidos, país no qual encontrou relutância com a existência de algo como a cultura rom. “A maioria dos americanos não faz a menor ideia do que a palavra ‘cigano’ significa,” diz. “Quando contava às pessoas que estava fazendo um filme sobre ciganos, me diziam: ‘Ah, meu colega de quarto é cigano: ele curtia a banda Greatful Dead’.”

Para fazer Caravana cigana, a diretora tornou-se também, de certa forma, uma seguidora: o filme registra uma extenuante turnê por 16 cidades da América do Norte em 2001, seguida de dois anos acompanhando as bandas em seus próprios territórios, filmando em lugares distantes do conforto dos hotéis e dos caminhões de bufê. “Estar no meio do deserto do Rajastão é lindo e tranquilo,” conta Dellal, que passou vários verões na Índia ainda quando criança com sua avó indiana, “mas não é nada fácil recarregar as baterias. Eu tinha que ir até a casa do comerciante de vinhos e implorar para que ele me deixasse usar a tomada. E o telefone mais próximo ficava a uma hora e meia de distância de ônibus. Mas não havia dificuldade alguma na convivência com as famílias: não poderiam ter sido mais acolhedoras.

Dellal admite, no entanto, que os primeiros dias da turnê de ônibus com os membros predominantemente masculinos das bandas não passaram sem problemas. “A primeira frase que aprendi em romani foi ‘Não seja um polvo!’ Mas depois que isso ficou claro – o que não demorou mais do que dois dias – fiquei completamente tranquila: tornei-me uma irmã.” Os indianos também ajudaram. “Quando qualquer discussão começava a brotar, de repente um indiano aparecia no meio fazendo algo de engraçado e todos riam!”

Dellal nunca havia feito um documentário sobre música e não sabia o que responder quando um amigo lhe perguntava quais eram seus filmes de música favoritos. “Percebi que na verdade não tinha visto muitos que tivesse gostado, então assisti a mais uns 20 ou 30 e percebi que ainda não tinha visto muitos dos quais gostasse. Eles presumiam que a música era maravilhosa e que o espectador era um fã, então era só colocar aquilo numa tela grande que todos amariam. Eu realmente não queria fazer isso.”

Foi, provavelmente, uma sábia decisão: embora vendam álbuns em números impressionantes, as bandas que aparecem no filme são melhores ao vivo. De fato, Fanfare Ciocarlia é possivelmente uma das melhores bandas ao vivo do mundo, considerando sua apresentação na linda cidade romena, Sibiu, durante o verão.

Depois da exibição do filme em Cluj, capital da Transilvânia (e da Romênia), que possui uma grande e, ainda por muitas vezes, perseguida população rom, uma mulher se levantou e hesitante começou a falar sobre sua herança rom de uma maneira que parecia ser a primeira vez que falava sobre esse assunto em público. Exibições agora estão sendo organizadas para vários grupos – incluindo o grupo desta mulher – na Romênia.

Dellal decidiu logo cedo que, se ela quisesse captar o que era importante sobre a música cigana, não poderia simplesmente filmar os shows. “Falei para todo mundo que queria closes dos rostos quando fôssemos filmar os shows porque era [um filme] sobre as pessoas”, conta. “Queria que esse filme permitisse que a música se revelasse em vez de colocar imagens estilo MTV ou recortá-lo em vários pedaços. Mas, ao mesmo tempo, senti que o filme tinha que oferecer muito mais, e por isso senti que era realmente importante conhecer as pessoas e visitar seus diferentes países para que, ao fim, mesmo que você não quisesse aprender nada, já tivesse aprendido algo inesperado.”

Ela recebeu grande ajuda nisso por ter como seu principal operador de câmera um dos maiores nomes de documentários, Albert Maysles (diretor de Gimme Shelter e Grey Gardens, entre outros), então com 75 anos. Ela o conhecera cinco anos antes em um festival de cinema e lhe contara seus planos. “E ele disse, ‘eu vou filmar isso para você!’. Eu disse, ‘Al, que maravilhoso, mas acho que meu orçamento não passa nem perto do seu valor’. Então ele disse, ‘Isso não tem nada a ver com nada, eu definitivamente quero fazer esse filme’. E ele não estava brincando. Ele é tão cheio de disposição que chega a ser ridículo. Fomos fazer um teste de filmagem na Europa e eu disse, ‘Devo comprar uma passagem de classe executiva?’ E ele disse, ‘Não seja ridícula, compre a passagem mais barata que encontrar na internet: este é um documentário independente’.”

No entanto, foi seu outro operador de câmera, Alain de Halleux, que filmou a cena mais comovente do filme: o funeral do gênio do violino Nicolae Neacsu, de 78 anos, integrante da banda Taraf, que faleceu logo após a turnê de 2002. É uma cena emocionante, com músicos tocando do lado de fora da casa onde o corpo de Neacsu está, e as famílias rom chamando multidões para se despedirem. Na sequência final, o dia está nascendo e eu digo a Dellal que estou impressionado pelo fato de os músicos terem tocado a noite toda. “Na verdade”, diz, “eles tocaram durante três noites.”


1 Originalmente publicado pelo jornal London Evening Standard em agosto de 2007. Tradução de Fabiana Comparato.

2 Canção infantil inglesa de autor desconhecido. Os primeiros versos dizem: “My mother said never to play / with the gypsies in the woods, / and if i did she would say / naughty girl to disobey / Your hair chant curl” (“Mamãe mandou nunca brincar / com os ciganos no bosque / e se eu fosse, ela dizia / uma menina desobediente / meu cabelo não encaracolaria”). [N.E.]